Por Ivan Barbosa Rigolin, advogado administrativista

 

I – Quem há ao menos umas duas décadas conhece o serviço público e a arte de ser servidor público – tendo sido servidor ou mesmo não o tendo, bastando nesse caso ser bom observador – seguramente já terá concluído que a carreira é uma das mais arriscadas no mercado das profissões, independentemente da especialidade pública.

Profissão de alto risco? Atualmente sim. Não se cuida propriamente de riscos físicos, como os que enfrenta um mergulhador, um domador de feras, um instrutor de escalar o Everest, um dublê de cinema ou um empregado de plataforma marinha de petróleo. A periculosidade não é bem essa.

Também não se estão a referir os riscos de ser carteiro em certas regiões das grandes cidades, ou dono de loja lotérica nas mesmas regiões, atividades essas nas quais cada dia de sobrevivência é de ser comemorado pelo profissional. Os riscos ora a comentar não são dessa natureza.

Referem-se aqui os riscos jurídicos ao exercício da profissão, aqueles até há poucos anos eram nem sequer suspeitados por quem ingressasse no serviço público, em geral e com justo motivo alegre, despreocupada e esperançosamente.

Mas, Guimarães Rosa, adequadamente citado certa feita pelo Desembargador paulista Ricardo Cintra Torres de Carvalho, já nos alertara de que viver é perigoso. O que não se sabe é se o extraordinário romancista mineiro incluía as carreiras públicas no perigo...

 

II - A teoria dos riscos nos contratos – ou seja, a zona aleatória que todo contrato contém, expressão a significar simplesmente o campo de risco – foi desenvolvida no direito civil e posteriormente também no do direito público, especialmente o administrativo, e tem imediata utilidade no campo dos contratos administrativos de obras e de serviços.

Aleatório é referente à álea, que é zona de azar, de risco, de incerteza, de insegurança, de precipitação, de inconfiabilidade ou de instabilidade, seja maior, seja menor. O neologismo advindo do inglês para aquilo é randômico, de random ou área de risco, de incerteza, de imprevisão, do que não é firme e do que é variável.

A atual lei brasileira de licitações e contratos contém menção à álea econômica extraordinária e extracontratual dos contratos (Lei nº 8.666/93, art. 65, inc. II, al. d, in fine), o que abrange a sua zona de riscos, de caráter tão somente econômico e não de outra natureza, que ultrapassem o risco natural e de certo modo calculado que qualquer contrato contém – já que todo contrato implica ao menos algum risco de parte a parte.

Assim como existe álea econômica outras zonas de risco também estão quase sempre presentes nos contratos, como

  1. a) a operacional ou física, que se refere a riscos físicos para a execução, como em obras que dependem de prospecções e de trabalhos em terrenos não suficientemente palmilhados e conhecidos;
  2. b) a álea puramente financeira, que não chega a ser econômica porque se refere apenas problemas de caixa, da moeda ou de sua liquidez, sem afetar a situação econômica da empresa propriamente;
  3. c) a álea da gestão, relativa a problemas derivados ou consequentes tão só da fiscalização, do acompanhamento e do gerenciamento dos contratos, e que podem ser gravíssimos e comprometer toda a execução - como, aliás, frequentissimamente ocorre em nosso país -, existindo ainda
  4. d) a álea institucional ou, particularizando de outro modo, jurídica. Trata-se da zona de riscos de caráter puramente institucional com relação aos fundamentos jurídicos do contrato, e às regras de direito que incidem sobre o pacto e sua execução. Nessa álea estão principalmente contemplados os riscos de alterações das regras jurídicas, que, mesmo que não devessem atingir o contrato firmado sob regras anteriores, na prática em nosso país infelizmente muita vez atropelam o contrato por ordem das autoridades contratantes.

As autoridades contratantes com frequência em verdade obrigam os contratados a engolir as novas regras, para, por exemplo, dar descontos, ou realizar o que não estava contratado sem alterar o preço, sob pena de rescisão contratual – e não se preocupam muito com as consequências financeiras dessa antecipada e injustificada rescisão, sabendo que as ações indenizatórias consumirão algumas décadas até serem resolvidas.

Trata-se de o mais forte exercer seu poder sobre o mais fraco como sempre aconteceu na face do planeta, na mesma igualdade que existe entre um leão e um ratinho.  E o direito... ora, o direito!

Se na teoria os atos administrativos são pressupostamente idôneos, na prática as coisas muita vez são bem diferentes, a exemplo dos sucessivos calotes no pagamento dos precatórios e os planos ou embustes governamentais de confisco de dinheiro da população.

Mas, é fato certo que até mesmo as imperfeições técnicas das leis e das normas regedoras dos contratos, imperfeições essas que não eram sabidas de início, mas que ficaram evidentes ao largo da execução, integram a álea institucional dos contratos.  Por vezes revela-se tão defeituosa a legislação de regência – ou por ultrapassada, ou por irrealística, ou por anacrônica – que esse fato precisa ser considerado ante pleitos por qualquer das partes de revisão a do ajuste, vítima das instituições insuficientes.  Não é comum, mas com a legislação que temos nunca será de espantar que ocorra.

Se resumidamente assim podem ser os riscos do contrato, quanto à vida dos servidores públicos estão mais restritos, nos dias que correm, a uma espécie: os jurídicos.  Que raio é isso?

 

III – A guisa de explicar, passamos a apenas relatar alguns casos defrontados ao longo da vida profissional, em geral de clientes, cujos nomes evidentemente são omitidos.  Deixamos de tecer impressões ou comentários, que ficam a cargo e por conta do gentilíssimo leitor.

Caso 1: a servente que se lascou.

Em um Município do norte do Estado de São Paulo alguns servidores do Legislativo, sobressaindo o caso de uma servente sofreram ação civil pública, com nota de improbidade administrativa, porque receberam sem oferecer resistência, e durante algum tempo, uma gratificação dada pela lei municipal.

Esses servidores não tiveram, como dificilmente poderiam ter tido, nenhuma mínima participação na formação legislativa daquela vantagem. Todo o processo legislativo se deu independentemente da sua vontade ou da sua atuação, e enfim a lei, aprovada e sancionada, estabeleceu uma gratificação aos servidores.

Foram processados numa ação civil pública, e condenados em primeira e em segunda instância, por ato de improbidade. O ato, repita-se, foi o de receber a gratificação que a lei municipal lhes concedera, e de cuja origem não participaram.

Atualmente recorrem para os tribunais superiores em Brasília, mas a esperança de reformarem a decisão não é alentadora.  Seu ato: receber o que a lei lhes deu, sem rebelar-se e sem suscitar nenhum sério incidente de juridicidade.

 

IV – Caso 2: a condenação dos RS 30,00.

Um cidadão, então cliente, foi condenado em segunda instância numa ação civil de improbidade que sofreu pela acusação de ter adulterado uma nota fiscal, que o autor pretende que era originariamente de R$ 3,00, para o valor de R$ 33,00.

Ouvido o proprietário do estabelecimento emissor da nota, este informou em juízo que o seu restaurante não vendia nenhum produto a R$ 3,00; a emissão daquela nota por ele seria, portanto, virtualmente impossível, a uma porque devem ser raras as pessoas no planeta que pedem comprovante de uma despesa desse valor em restaurante, e a duas porque não existia produto algum no estabelecimento vendido àquele valor insignificante.

Houve também neste caso processo criminal, no qual o mesmo réu foi absolvido. Mas isso, por ele arguido na ação civil, não impediu a sua condenação em primeira e em segunda instâncias, sendo que os recursos superiores se arrastam na capital federal.

 

V – Caso 3: a cor do veículo.

Outra pessoa em nosso Estado viu-se processada e condenada em primeira instância em ação pública na qual a parte autora a acusava de ter direcionado uma licitação para aquisição de um veículo de passeio, porque do edital constava a cor cinza chumbo, ou verde abobrinha, ou laranja rocambole, que a servidora autora do edital mencionara na descrição do bem desejado.

Só existia uma agência de automóveis na cidade, e a incauta pessoa valeu-se do nome da cor que algum vendedor lhe informara que existia na agência, quando fora indagado sobre se tinham carro daquela cor.

O carro foi vendido afinal a preço inferior ao da tabela da empresa, e a escolha da cor se deveu a uma informal padronização que existia na Prefeitura.  Apenas a agência local participou do certame, que foi regularmente anunciado e publicado, e não era um convite, mas modalidade licitatória de limite superior.

Processada, a servidora responsável pela licitação foi duramente condenada em primeira instância, mas absolvida em segunda.

 

VI – Caso 4:  a licitação trágica.

Uma servidora de uma Câmara Municipal da Grande São Paulo viu-se processada em ação civil pública, com nota de improbidade, porque, membro da comissão de licitação de sua entidade, encaminhou documentos que licitantes haviam apresentado no certame, e depois o autor da ação acusou a todos os envolvidos de viciar, por direcionamento, a licitação.

Teve bens, contas bancárias e valores bloqueados, e não apenas seus como de sua família que nem sequer fazia idéia do que estava acontecendo.  Acham-se bloqueados até o dia de hoje, por mais reiterados e insistentes apelos que oferecesse ao Judiciário, indicando o descabido da medida.

Primária em ser ré de quaisquer ações, desde então perdeu o sono, como sói acontecer a réus neófitos ou jejunos nessa matéria em que jamais pretenderam ser experientes.

 

VII – Caso 5: ação por nepotismo contra o entendimento do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal decidiu por repetidas vezes que o cargo de Secretário Municipal tem índole política e por isso escapa à abrangência do conceito de nepotismo que se extrai da Súmula Vinculante STF nº 13, que versa sobre o assunto.  Extrai-se o conceito, porque a Súmula, por mais esforço que por certo seus autores despenderam na sua elaboração, deixa talvez mais dúvidas que certezas quando de sua aplicação na vida prática.

Reconheçamos que o tema é assaz cabeludo, porque nada fácil é resumir ou sumular em poucas linhas toda a regra do nepotismo a ser tido como inconstitucional; e se bem que o panorama quanto a isso melhorou, está ainda longe de resolvido em definitivo.

O fato é que a Suprema Corte, desde a edição da referida Súmula 13, já pronunciou diversos julgamentos fixando que Secretário Municipal é posto que não sofre as restrições do nepotismo proibido, em face de seu caráter eminentemente político e não de linha ou de carreira – e que por isso mesmo nem sequer se perfilha ao lado dos demais cargos em comissão ([1]).

Uma irmã de um Prefeito paulista, entretanto, confiante na orientação do Supremo Tribunal, mereceu processo por improbidade por ter aceito o cargo de Secretária Municipal, e o Prefeito é também réu.  Prevaleceu até este ponto, portanto, a leitura estadual da Súmula Vinculante e não a do seu autor, o Supremo Tribunal Federal.

 

VIII – Caso 6: o impossível acontece ([2]).

(velhinho Recife – desclassificou remuneração de 1/3 do salário mínimo)

 

[1] Sempre sustentamos, e ainda pensamos assim, que a  natureza  do cargo de Secretário Municipal, como do de Secretário de Estado e como do de Ministro de Estado, é híbrida, um misto de cargo em comissão e cargo de agente político.  Observando-se atentamente, não são bem nem  uma coisa nem outra, porque detêm características de cargo e de mandato, ou ao menos de designação política. Mas parece que prevalece o entendimento de que são postos políticos, de modo que fomos vencidos... mas não convencidos.

[2] Como nas Seleções do Readers Digest.