Por Kiyoshi Harada, presidente do IBEDAFT

Invariavelmente consta dos contratos de locação imobiliária a cláusula de responsabilidade do locatário pelo pagamento de tributos incidentes sobre o imóvel locado. Nessas hipóteses, no caso de o inquilino deixar de pagar o IPTU incidente sobre o imóvel que utiliza, a responsabilidade pelo seu pagamento perante o fisco municipal será sempre do proprietário, porque o fato gerador desse imposto é a disponibilidade econômica do proprietário, do titular do domínio útil ou do possuidor a qualquer título.

O inquilino é mero possuidor direto do imóvel, sem a disponibilidade econômica que tem apenas o seu proprietário, que exerce a faculdade de usar, gozar, fruir e de dispor da coisa. Somente o possuidor que detém a disponibilidade econômica, como o posseiro, o compromissário comprador imitido na posse tem o condão de posicionar-se como sujeito ativo do IPTU.

E aqui surge o grande problema, quando o IPTU é cobrado a maior. O lançamento IPTU de 2019, por exemplo, na grande maioria dos casos, não respeitou as travas de 10% e de 15%, respectivamente, para imóveis residenciais e imóveis não residenciais, previstas no art. 9º da Lei municipal de nº 15.889/2013. No lançamento do imposto de 2020, salvo raras exceções, observou-se essas travas legais. Porém, em compensação exagerou-se a elevação do valor venal em relação a prédios novos, onde o critério comparativo com o lançamento do exercício anterior fica prejudicado.

Os proprietários de imóveis locados quedaram-se inertes por não lhes trazer consequências econômicas, omitindo-se nas providências contra o fisco, a exemplo das concessionárias de serviços de distribuição de energia elétrica que vêm repassando automaticamente os infindáveis penduricalhos que encarecem as tarifas de energia elétrica. Sobre esses penduricalhos recaem o ICMS a alíquota de 25%. Não é por acaso que temos a energia elétrica mais cara do mundo para o consumidor.

O indefeso inquilino não pode impugnar o lançamento exacerbado do IPTU, nem ingressar com a ação de repetição de indébito, por não ser sujeito passivo do imposto. É o posicionamento da jurisprudência do STF, conforme ementa abaixo:

 

“TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. IPTU.

ILEGITIMIDADE ATIVA DO LOCATÁRIO PARA POSTULAR DECLARAÇÃO DE

INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA E REPETIÇÃO DE INDÉBITO.

PRECEDENTES.

  1. A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que "o locatário, por não ostentar a condição de contribuinte ou de responsável tributário, não tem legitimidade ativa para postular a declaração de inexistência de relação jurídica tributária, bem como a repetição de indébito referente ao IPTU, à Taxa de Conservação e Limpeza Pública ou à Taxa de Iluminação Pública" (AgRgno REsp 836.089/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/02/2011, DJe 26/04/2011).
  2. Agravo regimental não provido.”

 

Como fica a situação do inquilino lesado em seu direito, pagando um tributo além dos limites legais?

A Constituição consagra no inciso XXXV, do art. 5º o princípio da universalização da jurisdição, para assegurar a todos o acesso ao Judiciário para a apreciação da lesão ou ameaça a direito.

Dir-se-á que caberá ao locatário acionar o locador para que ele ingresse em juízo impugnando o lançamento tributário ilegal e que, ao depois, lhe destine o resultado financeiro da demanda. Contudo, essa providência, como é presumível levará lustros. Primeiro há que transitar em julgado a ação do inquilino contra o locador; depois deverá transitar em julgado a decisão judicial da ação do locador contra o fisco municipal. Em seguida haverá moroso procedimento de precatório judicial para recebimento do valor da repetição de indébito. Os precatórios vêm sendo empurrados com a barriga desde 1988, quando se decretou a sua primeira moratória (art. 33 do ADCT). A outra alternativa seria a de acionar o locador para exonerar-se do IPTU na parte excedente. Só que nessa hipótese, indispensável a discussão em torno da ilegalidade do IPTU cobrado a mais, discussão essa impossível juridicamente sem a integração a lide do fisco municipal. Como fazer essa integração a lide? Nomeação do Município a autoria? Adcitação para figurar o fisco municipal no polo passivo? Como se vê, as opções não são nada fáceis! O risco de indeferimento é muito grande!

O princípio de acesso ao Judiciário não deve ser entendido como mero direito de ingressar em juízo. Esse princípio fundamental do cidadão deve ser interpretado como direito de acesso à ordem jurídica justa. E nada tem de justo assegurar o direito de ação do inquilino nos termos retroapontados. Dependendo da idade ele não viverá o tempo necessário para colher os frutos materiais da demanda eventualmente vitoriosa.

Como, então, proceder? Cabe ao Superior Tribunal de Justiça rever o seu posicionamento, permitindo que o locatário postule diretamente em juízo impugnando o lançamento de tributo que por força contratual ficou como sendo de sua responsabilidade. Há no caso legítimo interesse econômico do locatário.

Se há tanta jurisprudência criativa, assim como a jurisprudência defensiva, não há porque deixar de estender ao locatário a legitimidade ad causam do consumidor de energia elétrica para postular diretamente em juízo para a repetição de indébito da tarifa energética cobrada a mais por intermédio da concessionária dos serviços de transmissão da energia elétrica. Nessa hipótese é tranquila a jurisprudência daquela Corte Especial.

Efetivamente, o STJ decidiu sob o rito de recurso repetitivo (art. 1036 do CPC/2015) que o consumidor detém legitimidade ativa para postular a repetição dos valores a título de ICMS incidente sobre a demanda contratada e não utilizada de energia elétrica (Resp n 1.299.303/SC, Rel.Min. César Asfor Rocha, Primeira Seção, DJe de 14-8-2012). Igualmente afastou a incidência do ICMS sobre a TUST e a TUSD embutidas na conta de energia elétrica, atendendo à demanda ajuizada pelo consumidor (AgRg no Resp n 1.408.485/SC, Rel. Min. Humberto Martins, DJe de 19-5-2015). O TJSP, também vem seguindo a mesma orientação (Ap. Civ.n 1009024-30.2016/São Calos, Rel .Des. Osvaldo de Oliveira, j. 19-7-2017).

A hipótese do inquilino a quem é repassado o IPTU ilegal pelo proprietário-locador em nada difere da situação do consumidor de energia elétrica a quem é repassado ICMS ilegal, embutido nas contas de energia elétrica.

O Direito busca a justiça para todos, a fim de assegurar a paz social. Contudo, o legislador que não é onisciente, não pode regular todas as hipóteses que podem ocorrer no mundo da realidade.

Cabe ao juiz na aplicação da lei atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, como dispõe o art. 5º da LINDB. Deixar o locatário de imóvel sem defesa contra tributos ilegais e inconstitucionais, certamente, não atende ao disposto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

SP, 13-4-2020