Independentemente da discussão em torno da constitucionalidade dos “acordos de financiamento por terceiros privadosdas acções colectivas”, o legislador nacional parece propugnar agora a tese de que tais compromissos não berram na paisagem jurídica pátria. Sobretudo, se a tal se antepuserem determinadas restrições.

Os defensores da tese da admissibilidade parece, no entanto, ignorarem algo que constitui, com efeito, clamorosa omissão legislativa.

A Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, em obediência à Directiva 2003/8/CE, do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, sob a epígrafe “regras mínimas comuns relativas à assistência e ao apoio judiciário em matéria civil, comercial [e de consumo]”, prescreve numa das suas disposições (o n.º 3 do artigo 6.º ):

1 - …

2 - A protecção jurídica é concedida para questões ou causas judiciais concretas ou susceptíveis de concretização em que o utente tenha um interesse próprio e que versem sobre direitos directamente lesados ou ameaçados de lesão.

3 - Lei própria regulará os sistemas destinados à tutela dos interesses colectivos ou difusos e dos direitos só indirecta ou reflexamente lesados ou ameaçados de lesão.

4 - No caso de litígio transfronteiriço, em que os tribunais competentes pertençam a outro Estado da União Europeia, a protecção jurídica abrange ainda o apoio pré-contencioso e os encargos específicos decorrentes do carácter transfronteiriço do litígio, em termos a definir por lei.”

O facto é que de então para cá só o silêncio sobreveio.

E as tomadas de posição que vimos assumindo ao longo dos tempos não têm tido a devida ressonância nos corredores do poder.

Mas o legislador dá de barato, na transposição da Directiva Acções Colectivas (com nove meses de atraso face à data-limite para o efeito), que o ordenamento admite tal financiamento e, por conseguinte, limita-se a considerar, no artigo 10.º da Proposta de Lei 92/XV/1.ª (DAR – II série – A – de 02 de Junho pretérito) que se discutiu sexta-feira pretérita, em sessão plenária no Parlamento, um sem-número de medidas cautelares, a saber:

1.º O demandante da acção colectiva fornece ao tribunal cópia do acordo, com uma síntese financeira que enumere as fontes de onde promana o financiamento como suporteda acção colectiva…

2 .º O acordo de financiamento garantirá a independência do demandante e a ausência de conflitos de interesses.

3.º A independência afere-se pela liberdade de instaurar (a), desistir (da) ou transigir (na) acção em homenagem à tutela dos interesses em causa.

4.º Consequentemente, o financiador não pode impor ou impedir o demandante de agir com independência no decurso da acção, sendo nulas quaisquer cláusulas em contrário constantes de acordo ou apostilha.

5.º O acordo de financiamento não pode prever uma remuneração do financiador que excedavalor justo e proporcional, avaliado à luz das características e factores de risco da acção colectiva em causa edo preço de mercado de um tal financiamento (seja lá isso o que for…).

6.º São inadmissíveis acções colectivas suportadas por um qualquer financiador se, ao menos, um dos demandados for seu concorrente ou entidade dele dependente.

7.º Se ocorrer violação das regras precedentes, o tribunal convidará o demandante a, em dado lapso de tempo, recusar (ou fazer alterações a) o financiamento por forma a garantir o respeito pelas disposições de base:ao julgador cumprirá declarar a ilegitimidade processual activa do demandante senão forem observadas as preconizadas modificações.

8.º Se houver rejeição da legitimidade processual do demandante,em razão das promiscuidades subsistentes,tal não afectará os direitos dos titulares dos interesses na acção co-envolvidos.

Uma coisa é certa: o legislador português, pela vez primeira, considera tacitamente admissível o financiamento por terceiros privados, ao menos, das acções colectivas no ordenamento jurídico pátrio.

O que quer significar que se alivia destarte o Estado dos emergentes encargos e se obsta à criação, corolário lógico do acesso à justiça, de um Fundo de Direitos Colectivos, que outros ordenamentos criteriosa e laboriosamente instituíram em prol dos titulares de interesses individuais homogéneos, colectivos e difusos.

Eis o estado da questão em Portugal.

 

Mário Frota

presidente emérito da apDC – Direito do Consumo, de Portugal