Por Kiyoshi Harada

RECURSO ESPECIAL Nº 1.714.870 – SP (2017/0276201-8)

RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE: JOSE RAFAEL ARAUJO E OUTROS

RECORRIDO: LADISAEL BERNARDO E YARA MARIA FREIRE BERNARDO

“EMENTA PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ORDEM JUDICIAL DE DESPEJO. IMPOSSIBILIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO DE ATO DE APREENSÃO JUDICIAL. 1. Embargos de terceiro, por meio dos quais se objetiva desconstituir ordem judicial de desocupação de imóvel exarada em ação de despejo ajuizada em face de suposto

locatário e alheia ao conhecimento dos embargantes. 2. Ação ajuizada em 07/07/2015. Recurso especial concluso ao gabinete em 16/11/2017. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é definir se os embargos de terceiro são via processual adequada para a pretensão dos recorrentes de defender sua alegada posse de ordem de despejo exarada em ação da qual não fizeram parte, ajuizada em face de suposto locatário. 4. Os embargos de terceiro foram opostos na vigência do CPC/73, motivo pelo qual a análise de seu cabimento deve observar as regras nele estabelecidas. 5. Os embargantes (ora recorrentes) afirmam: i) estar na posse mansa e pacífica do bem – o que, alegam, inclusive, dar-lhes o direito ao reconhecimento da usucapião; ii) ter tido sua posse ameaçada por ordem de despejo; e iii) a ordem de despejo emanou de processo do qual não fizeram parte, uma vez que totalmente alheios à relação locatícia. 6. O art. 1.046 do CPC/73 preceitua que quem, não sendo parte no processo, sofrer turbação ou esbulho na posse de seus bens por ato de apreensão judicial, em casos como o de penhora, depósito, arresto, sequestro, alienação judicial, arrecadação, arrolamento, inventário, partilha, poderá requerer lhe sejam manutenidos ou restituídos por meio de embargos. 7. Não obstante tratar-se o rol do art. 1.046 do CPC/73 de rol exemplificativo, tem-se que a ordem judicial de despejo não se enquadra, de qualquer forma, em ato de apreensão judicial, a fim de autorizar a oposição dos embargos de terceiro. 8. Recurso especial conhecido e não provido, com majoração de honorários, observada eventual concessão da gratuidade de justiça.

ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos. Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Moura Ribeiro e do realinhamento do voto da Sra. Ministra Relatora Nany Andrigh, nos termos do voto-vista, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 24 de novembro de 2020(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI –  Relatora

Comentários:

 

Trata-se de embargos de terceiro interposto pelos detentores da posse direta do imóvel há mais de uma década, com fundamento no art. 1064 do CPC/73, a fim de se opor à ação despejo movida contra um locatário, por não terem sido partes no feito e nem tiveram conhecimento dessa ação de despejo.

Prescrevia o então vigente art. 1046 do CPC/73:

“Art. 1.046. Quem, não sendo parte no processo, sofrer turbação ou esbulho na posse de seus bens por ato de apreensão judicial, em casos como o de penhora, depósito, arresto, sequestro, alienação judicial, arrecadação, arrolamento, inventário, partilha, poderá requerer lhe sejam manutenidos ou restituídos por meio de embargos”.

Vencidos nas instâncias ordinárias, por inidoneidade da via processual eleita, ingressam com o Recurso Especial alegando negativa de lei federal, inclusive, por divergência jurisprudencial. Foi nomeada como Relatora a Ministra Nancy Andrighi.

A Ministra Relatora dava provimento parcial ao Recurso Especial filiando-se à corrente doutrinária e jurisprudencial que entende ser o rol do art. 1046 do CPC/1973 meramente exemplificativo. Entretanto, após a divergência aberta pelo Ministro Moura Ribeiro, para seguir a orientação da 3ª Turma, a Ministra Relatora reformulou o seu voto, e a Corte Especial negou provimento ao Recurso Especial por unanimidade, sufragando a tese de que a ação de despejo não configura um ato de apreensão judicial, a fim de autorizar a oposição dos embargos de terceiro.

Entendo, data vênia, que correto estava o voto original da Ministra Nancy Andrighi.

Negar provimento sob o fundamento de que os embargos de terceiro não é meio processual adequado para se opor ao despejo de quem não foi parte no processo por não configurar ato de constrição judicial de que cuida o art. 1046 do CPC/73, implica negar direito de ação para assegurar o direito material do posseiro.

O princípio de que a todo direito corresponde uma ação que o assegura integra o direito geral, ou seja, é um princípio geral de direito, e como tal não pode ser ignorado.

Pergunta-se, negado o direito a embargos de terceiro, no caso sob comento, qual outra ação judicial seria adequada para a garantia do direito?

O mandado de segurança, como se sabe, não cabe contra ato judicial salvo em casos de decisões teratológicas. Embargos à execução, igualmente, são incabíveis porque não foram partes na ação de conhecimento. Ação de manutenção de posse, também, a nosso ver, não seria admissível em face do disposto no art. 560 do CPC/15:

“Art. 560. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de                              turbação e reintegração em caso de esbulho”.

Ordem de despejo emanada do Judiciário pode ser entendida como caso de turbação de posse ou de esbulho?

A resposta a essa indagação está no art. seguinte:

“Art. 561. Incumbe ao autor provar:

I –a sua posse;

II – a turbação ou o esbulho praticado pelo réu;

…”

Por obvio, o texto legal está se referindo a turbação provocada por um particular, nunca pelo juiz representando o Estado que não pode se posicionar como réu.

Logo, o posseiro que não teve conhecimento da ação de despejo ficará sem direito de ação, o que contraria o princípio geral de direito de que falamos.

Tanto é que o CPC de 2015 não mais circunscreve à constrição judicial, para legitimar os embargos de terceiros de quem sofrer turbação ou esbulho em sua posse decorrente de ação de que não foi parte.

Efetivamente prescreve o art. 674:

“Quem, não sendo parte no processo, sofrer constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo, poderá requerer seu desfazimento ou sua inibição por meio de embargos de terceiro”.

Como se verifica, o vigente CPC retirou a qualificação da constrição judicial, bastando tão só a constrição ou a ameaça de constrição sobre bens, cujo direito seja incompatível com o ato constritivo, incorporando a doutrina que advogava a tese de exemplificatividade do rol do art. 1046 do diploma processual antecedente. É o posicionamento que se harmoniza com a ordem jurídica como um todo.

Ademais, o caso sob exame é muito estranho. Como é possível o locatário ter tomado posse em um imóvel ocupado por terceiros há mais de uma década? Como é possível que os posseiros não tenham conhecimento do locatário se realmente existente? E se o locatário não estava na posse do imóvel, por óbvio, não cabe ao “locador” ingressar com a ação de despejo.

Tudo indica que o esperto proprietário forjou um contato de locação com um terceiro, para retirar os posseiros, fazendo as vezes da uma ação petitória de duvidosa procedência em face da consolidação do direito de posse pelos ocupantes do imóvel.

Ao longo de mais de meio século de exercício profissional já tivemos casos de “contratos de locação” forjados, para prejudicar os ocupantes do imóvel com animus usucapiente.

 

SP, 21-12-2020