Por Eduardo Marcial Ferreira Jardim*.

Sumário: 1. Introdução. 2.  Matéria sub examen: conduta do acusado, per se, ou a competência do STF para decretar a prisão. 3. Prisão de membro do Congresso Nacional ao lume do artigo 53, da CF. 4. Conclusões.

 

  1. Introdução

O presente ensaio tem por objeto tecer breves comentos sobre o episódio envolvendo o Deputado Federal DANIEL SILVEIRA, fazendo-o sob o prisma estritamente jurídico e sem matizes políticos ou partidários ou ideológicos, tudo com respeito reverencial a  todos que participaram do feito, em sua multiplicidade de meandros.

Destarte, em estreita síntese será questionado se, naquela sessão, a Câmara dos Deputados poderia referendar a prisão do Deputado com fulcro na sua conduta ou se deveria circunscrever o decisum à validade da referida ordem provinda do Pretório Excelso. Nas dobras desse tópico, merece registro, também, uma sucinta análise da motivação que norteou a deliberação da Câmara.

Meritum causae, verdade seja, o Deputado proferiu ofensas gravíssimas a Ministros do Supremo Tribunal Federal, bem como à própria Corte, senão também à Democracia. Entrementes, cabe repensar se os aludidos pronunciamentos estariam sob o pálio da liberdade de expressão e de opinião e, portanto, invioláveis, ou se teriam transposto as respectivas fronteiras e, por isso, renderiam margem à prisão determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes.

Outrossim, impende verificar se os crimes atribuídos ao Deputado seriam inafiançáveis e se estariam sob o estado de flagrância. Demais disso, força é analisar também o chamado flagrante permanente previsto no artigo 303 do CPP, senão também se a Lei e Segurança Nacional estaria em vigor ou não.

À derradeira, trar-se-á à baila as conclusões alvitradas pelo presente ensaio, tudo com o desígnio de contribuir para a discussão de tema de imensurável magnitude, fazendo-o sob o binômio da liberdade de expressão em conjugação com o respeito em relação a pessoas e instituições entreligadas ao assunto.

 

  1. Matéria sub examen: a conduta do acusado, per se, ou a competência do STF para decretar a prisão.

 

Desponta à evidência que a Câmara dos Deputados deveria decidir tão somente se o Supremo Tribunal Federal poderia ou não decretar a prisão do Deputado Daniel Silveira,  simpliciter et de plano.

Por conseguinte, afiguram-se equivocados e impertinentes todas as manifestações que lastrearam a maioria dos votos favoráveis à manutenção da prisão do parlamentar. Ora, é de mister obtemperar e ressaltar que os pronunciamentos realmente censuráveis do Deputado não integravam a pauta de julgamento, ao menos ao ensejo da referida sessão.

Sobremais, o aludido desconcerto configura uma inexorável falácia, pois inexiste qualquer correlação lógica entre a manifestação desrespeitosa do Deputado e a questão formal segundo a qual o Supremo poderia mandar prender ou não. Deveras, o raciocínio falacioso é dotado de persuasão psicológica, mas falece de densidade lógica, daí a sua impropriedade em qualquer situação, notadamente num feito desse jaez.

Outra intercorrência das vicissitudes ora suscitadas consiste na inadequada motivação do ato decisório, tanto que o resultado do julgamento jamais poderia ser fruto da sorte ou do acaso ou mesmo de posicionamento político, devendo expressar a verdadeira atuação da Legislação sobre o fato levado ao conhecimento do julgador. Esses dizeres, a bem ver, fazem coro com a lição abalizada de Piero Calamandrei em seu Estudo “Processo e Democrazia”, in Opere Giuridiche, v. 1, p. 664, 1965.

No mesmo sentido, com sua proverbial acuidade, Arruda Alvim preleciona que a discricionariedade do julgador na formação de seu convencimento tem o seu preço na motivação (1976, Repro: 65).

Esse é o ponto do problema tematizado, uma vez que a sessão sob exame deveria julgar se o Supremo poderia ou não mandar prender o Deputado. Nada mais. Em face do desconcerto então verificado, resta inegável que a decisão depara-se acoimada de nulidade pleno jure.

  1. Prisão de membro do Congresso Nacional ao lume do caput do artigo 53, combinado com o parágrafo 2º da CF.

 

Primeiramente, é de mister ressaltar que a interdependência harmônica dos Poderes da República são incompagináveis com a ordem de prisão de um Parlamentar sem o ad referendum da Casa legislativa, até mesmo na hipótese de cometimento de crime inafiançável, consoante as entrevozes do referido postulado constitucional inscrito no artigo 2º do Texto Magno.

Outrossim, é forçoso esclarece re  destacar  que os Deputados e Senadores desfrutam de inviolabilidade de opinião específica e expressa, quer no âmbito cível, quer no penal, na estrita conformidade com o disposto no caput do artigo 53 da Constituição da República, senão vejamos, ad litteram:

Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

A propósito, sufraga dessa opinião o abalizado magistério de Ives Gandra Martins, o qual com sua autoridade doutrinal e com a experiência de participante de audiências públicas da Assembleia Nacional Constituinte em 1987 e 1988, em recente entrevista ao Antagonista, afirmou que essa interpretação é equivocada. Ouçamo-lo, pois:  “O ministro teria que pedir autorização para a Câmara dos Deputados para prender o deputado, como a Constituição determina. Sem autorização do Congresso, insisto, ele não poderia mandar prender, por manifestação, um deputado, que é inviolado em suas manifestações. Isso, a meu ver, pode representar cerceamento da livre expressão dos deputados.”

Logo, o discutido crime de opinião não merece acolhida, o que não justifica a aplicação da pena de prisão em decorrência das manifestações ofensivas exibidas no vídeo gravado pelo do Deputado.

No mérito do decisum, o Supremo Tribunal Federal qualificou o vídeo do Deputado como exemplo de “emprego de violência ou grave ameaça à ordem vigente ou ao Estado de Direito,” o que, decididamente não ocorreu. Verdade seja, a gravação compreende ofensas e desrespeitos inaceitáveis, mas não constituem qualquer meio violento para alterar a ordem jurídica.

Demais disso, afora a ausência de fato típico, torna-se de mister veementizar em alto e bom som que a Lei de Segurança Nacional - Lei n. 7.170 de 14/12/1983 - invocada pela Corte, foi banida da ordem jurídica desde o advento da Constituição de 1988, mercê de   seu perfil autocrático e por traduzir uma longa manus da ditadura militar, pelo que, não foi recepcionada pela nova ordem constitucional democrática. É dizer, o referido diploma normativo desapareceu do ordenamento há mais de trinta e dois anos!

Se não há crime na óptica das observações ora expendidas, não haveria falar-se em flagrante de qualquer feição, mesmo o incredível flagrante permanente, locução sin sentido segundo a arguta linguagem de Genaro Carrió. Quanto à questionada modalidade de flagrante, apenas para ilustrar, lembremos uma lição memorável do Ministro Luis Gallotti do STF ao dizer que a lei não pode chamar de importação o que não é importação, bem como não pode chamar de venda e compra o que não é venda e compra, ou chamar de renda aquilo que não é renda e assim avante. (Recurso Extraordinário 71758-GB, julgamento em 14-06-1972, DJ 31-08-1973, RTJ vol 66-01   pp 00140).  Na trilha do mestre, força é dessumir que a lei não pode chamar de flagrante o que não é flagrante, sob pena de comprometer a lógica do direito e a segurança jurídica.

 

Outro ponto a ser analisado repousa na dimensão do que realmente foi falado pelo Deputado, vale dizer, o plexo de ofensas a instituições e a Magistrados do Pretório Excelso. Pois bem, à luz do Código Penal o que o Deputado disse poderia configurar crimes de calúnia e difamação, os quais, diga-se de passo, não se situam no rol da inafiançabilidade, donde, não autorizariam a prisão, seja por ausência de flagrante, seja pela inexistência de crime insusceptível de fiança.

A bem ver, consoante estampado no site do Conselho Nacional de Justiça, os crimes inafiançáveis são os seguintes: tortura; crimes hediondos; tráfico de drogas; terrorismo; e ação de grupo armado contra a ordem constitucional e o estado democrático. Como se vê, a conduta do Deputado não se subsume a nenhum dos tipos categorizados como não sujeitos à fiança, daí a inexistência de pressupostos que justifiquem a sua prisão.

Além do mais, os crimes sob comento são susceptíveis de retratação, o que teria o condão de extinguir a punibilidade, razão pela qual, ainda que a Câmara tenha julgado a matéria litigiosa indevidamente, já que o fez, deveria acolher a retratação e, com isso, extinguir a sanção imposta ao Parlamentar.

 

  1. Conclusões

 

Ante os escólios trazidos à sirga, força é reafirmar que, por todas as luzes, a Lei de Segurança Nacional é inaplicável ao caso, porquanto não recepcionada pela Constituição de 1988, instando reiterar, outrossim, que a inviolabilidade de   opinião e a interdependência dos Poderes não autoriza o Judiciário a determinar a prisão de Parlamentar, salvo se houver concordância da Casa Legislativa.

Por derradeiro, cumpre lembrar, também, que os crimes imputados ao Deputado   podem ser tipificados como calúnia e difamação, os quais não são inafiançáveis e se extinguem com a respectiva retratação, aliás, configurada em depoimento de viva voz do Deputado então acusado.

 

SP, 25-2-2021.

 

* Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).  Professor Titular aposentado de Finanças Públicas e Tributação no Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. (UPM). Professor no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Professor no Curso de Especialização em Direito Tributário   na Academia Brasileira de Direito Constitucional em Curitiba/PR e Professor no Curso de Especialização Damásio, sob a coordenação da Professora Regina Helena Costa e pelo Professor Rodrigo Frota. Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Cadeira n. 62. Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário- IBEDAFT. Autor de Obras jurídicas pelas Editoras Mackenzie, Noeses e Saraiva. Sócio de Eduardo Jardim e Advogados Associados.