Por Adilson Dallari.

Começando pelo começo: o Brasil é uma República federativa, formada pela União dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. Não há hierarquia entre os membros da federação. Todos recebem suas competências diretamente da Constituição Federal.

Nos termos da CF, a União tem poderes enumerados, ou seja, somente aqueles que constam expressamente da Constituição. Os Estados têm poderes residuais, ou seja: aqueles que não são nem da União, nem dos municípios. Por sua vez, os municípios receberam da CF competência para legislar sobre assuntos de interesse local. Ou seja, compete ao município dispor sobre assuntos de seu peculiar interesse, entendidos como assuntos que afetam especialmente as atividades locais, de acordo com as especificidades geográficas, econômicas e sociais de cada município.

Essa tradicional distribuição de competências foi sendo consolidada ao longo do tempo pela jurisprudência, de maneira a permitir, sempre, uma atuação harmônica entre as unidades federativas e, especialmente, a preservação da autonomia municipal. Porém, atualmente, em tempos de pandemia, esse estado de coisas foi bastante afetado, seja pela emergência de situações inusitadas, requerendo providências inusitadas, seja pela ausência de conhecimentos científicos consolidados e pacíficos, seja, ainda por questões políticas, pessoais e ideológicas. Tudo isso resulta em ineficiência administrativa, perdas econômicas substanciais e insegurança jurídica.

Não obstante esse desajustamento afete diversos setores de atuação do poder público, deve merecer atenção especial o que vem acontecendo no setor de saúde pública, sendo necessária uma análise da distribuição constitucional de competências nessa matéria. A Lei nº 13979, de 6/2/20, que dispões sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública, decorrente do coronavírus, em seu artigo 3º estabelece uma série de medidas que poderão ser adotadas para o enfrentamento da situação emergencial, entre as quais cabe destacar, para fins deste estudo, o isolamento social e a quarentena, para o que seria supostamente necessário o fechamento e/ou a limitação de determinadas atividades urbanas. Merece especial destaque a prudente limitação constante do §1º desse artigo: "As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública". Está expresso, nesse artigo, que todas as medidas nele prescritas poderão ser adotadas pelas autoridades públicas "no âmbito de suas competências".

Aqui está o problema: saber qual autoridade é competente para praticar qual ato, por meio de qual instrumento e com qual abrangência. Num primeiro momento, os cidadãos brasileiros foram vítimas de violências de toda ordem, praticadas especialmente por autoridades municipais. No momento atual, governadores estão legislando desbragadamente sobre restrições de direito, com total desconsideração dos direitos e garantias estabelecidos no artigo 5º da CF. Para completar a desordem jurídica, partidos de oposição ao governo federal ingressam no STF com uma enxurrada de ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) para que cada ministro, isolada e soberanamente, diga ao presidente da República como deve ele agir. Diante desse verdadeiro festival de abusos de autoridade, é forçoso um exame das normas constitucionais sobre saúde pública, para que se possa ter alguma luz sobre o assunto, identificando e especificando as competências das entidades dos diversos níveis de governo para legislar sobre a matéria.

O artigo 22° da CF, ao dispor sobre a competência legislativa privativa da União, não menciona a saúde pública. No artigo 23°, ao dispor sobre competências comuns da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, se refere expressamente, no inciso II, a "cuidar da saúde", o que compreende a expedição de atos normativos e a prática de ações administrativas. Por sua vez, o artigo 24°, que dispõe sobre a competência legislativa concorrente, no inciso XII menciona expressamente a "proteção e defesa da saúde", ressalvando, entretanto, no §1º, que "no âmbito da competência concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais". O entendimento doutrinário pacífico é no sentido de que devem ser entendidas como normas gerais apenas aquelas que comportam entendimento e atuação uniformes em todo o território nacional.

Para completar o quadro de competências em matéria de saúde pública, é indispensável que se examine o segmento da CF que cuida especificamente dessa matéria, a começar pelo artigo 196, que se transcreve: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Logo em seguida o artigo 198 estabelece que "as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único", o qual deverá observar uma série de diretrizes aí especificadas. Dada a relevância desse Sistema Único de Saúde, conhecido como SUS, cabe destacar (artigo 200, II) que a ele compete "executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica". O SUS foi instituído e estruturado pela Lei nº 8.080, de 19/9/90, que dispõe sobre a promoção, a proteção e a recuperação da saúde, podendo-se dizer que vem funcionando a contento, muito especialmente no tocante ao desenvolvimento de programas de imunização.

Em síntese, embora a pandemia tenha trazido novos problemas e novos desafios, é certo que tanto o sistema normativo, quanto a estrutura nacional em matéria de saúde fornecem parâmetros que deveriam ser seguidos pelas autoridades responsáveis nos diversos níveis de governo. Porém, o que se tem observado, na prática, são desencontros, desajustes e conflitos ditados por mesquinhos interesses políticos e ridículas demonstrações de autoritarismo. Esse estado de coisas, de absoluta desconsideração das análises da situação local sociodemográfica e epidemiológica foi muito bem descrito pela renomada professora Érica Gorga, do qual se transcreve um segmento: "No Estado de São Paulo, decretos do governador atingem os 645 municípios paulistas, com condições epidemiológicas absolutamente distintas uns dos outros: no início da pandemia, grande parte dos municípios foram obrigados a 'fechar' por meses, quando nem sequer existiam evidências de circulação do coronavírus, sem mortes a ele associadas e havendo significativa disponibilidade de leitos e infraestrutura médica subutilizada". (O Estado de S. Paulo, "O papel dos prefeitos na pandemia", 16/2/21).

A maioria dos prefeitos se curvou diante de tais absurdas imposições, mas os poucos que tentaram se insurgir foram vítimas de atitudes preconceituosas de promotores e juízes que declararam a invalidade de normas locais mais flexíveis e mais ajustadas às realidades locais. Obviamente, no tocante ao funcionamento de atividades comerciais, há um abismo entre os interesses de uma grande cidade, de uma cidade de vocação industrial ou agrícola, de uma cidade litorânea ou de uma cidade cuja principal atividade é o turismo. Salta escancaradamente aos olhos que a abertura e funcionamento do comércio tem muito maior relevância nestas últimas.

No presente momento, em face de um recrudescimento da Covid-19, alguns municípios estão editando medidas mais restritivas do que as constantes das normas estaduais, não havendo notícia de que tenha havido qualquer declaração de nulidade. Muito interessante é a situação da Bahia, onde um decreto estadual (Decreto nº 24.240, de 21/2/21) determinou o toque de recolher (restrição à circulação de pessoas no período das 20h às 5hs) em 381 municípios (de um total de 417), "em conformidade com as condições estabelecidas nos respectivos Decretos Municipais". Os "considerando" do decreto estadual não permitem saber o significado dessa referência a decretos municipais, nem a razão pela qual 36 municípios foram poupados da restrição.

Uma atividade que demonstra a irracionalidade de soluções uniformes é a que diz respeito ao ensino. Crianças, que são menos afetadas pela contaminação, foram privadas de comparecimento às aulas e ao sadio e indispensável convívio com colegas. Além das diferenças entre as populações de diferentes municípios, há também uma profunda disparidade entre escolas públicas e particulares. É impossível deixar de dizer que nas escolas públicas, onde a remuneração dos mestres era mais garantida, foi muito maior a resistência da retomada de atividades. Ninguém pretende ignorar a necessidade de ajustamentos, como distanciamento, uso de máscaras, maior higiene pessoal, mas isso é muito diferente do fechamento puro e simples, acarretando problemas tanto para as crianças quanto para as famílias.

Não faz sentido algum o governo do Estado decidir de maneira uniforme para realidades municipais distintas. Todo poder emana do povo e, no caso dos municípios o detentor do poder é a população local, que o exerce através de seus representantes democraticamente eleitos. As orientações gerais da autoridade estadual devem ser amoldadas às peculiaridades locais. Isso cabe aos prefeitos e vereadores.

Dizendo mais diretamente: numa perspectiva rigorosamente jurídica, o município não é subordinado ao Estado, nem o prefeito é subordinado ao governador. Numa perspectiva política, sim, pode haver prefeitos submissos ao governador, traindo a confiança neles depositada pelos munícipes.

Não se nega que cabe, sim, ao governo do estado restringir atividades comerciais, educacionais ou turísticas, em defesa da saúde, mas sem aniquilar a competência das autoridades locais, que podem amoldar as orientações gerais às suas peculiaridades. Não se trata de rebeldia ou ruptura, mas, sim, de convivência federativa, de respeito à autonomia dos entes federados, entre os quais, repita-se, não há hierarquia.

Nesse ponto, cabe ressaltar a oportunidade e relevância de artigo publicado neste mesmo informativo jurídico no último dia 11 por Fabrício Motta e Alessandra Gotti, com o título "Articulação: instrumento do Direito e das políticas públicas", do qual se transcreve um parágrafo: "O período de pandemia tornou clara a importância de diálogo e cooperação entre os entes da federação para a busca de eficiência e eficácia das políticas públicas, notadamente para aquelas que — como saúde e educação — constituem competências administrativas comuns, de acordo com a Constituição Federal. Diálogo interinstitucional, coordenação, cooperação, articulação e sinergia são algumas das expressões utilizadas muitas vezes como sinônimos para significar a necessidade de aproximação e soma de esforços para a realização de competências administrativas que, ainda que possuam certo grau de diferenciação, se identificam na noção maior de interesse público".

Em síntese, considerando que não se sabe, ainda, por quanto tempo perdurará a pandemia, é essencial reverter a orientação até agora predominante consistente numa disputa sobre quem pode mais, para se dar maior acatamento às competências constitucionais dos diferentes níveis de governo, respeitando-se o princípio da autonomia municipal, e dando muito maior ênfase à colaboração e à somatória de esforços, para que se possa atuar com maior eficiência, em benefício da saúde e da própria vida dos cidadãos.

 

Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

SP, 25-2-2021.