Por Kiyoshi Harada*

Estado de calamidade pública decorrente de pandemia não pode implicar suspensão dos direitos individuais, como acontece no estado de sítio, ou no estado de defesa.

Pois bem, governadores e prefeitos não estão obedecendo aos princípios constitucionais vigentes no ato de agir e no ato legislar por meio de decretos e portarias.

Governadores estão determinando o isolamento social horizontal e interferindo nos serviços de telecomunicações, monitorando os telefonemas por meio de celular com aparente e discutível propósito de aferir o nível de adesão ao isolamento. Prefeitos estão interditando acesso às praias que são bens da União. Regular o uso das praias não pode implicar sua interdição. O que é pior estão utilizando a guarda civil metropolitano, com desvio de sua missão constitucional (art. 144, § 8º da CF), para prender ilegal e arbitrariamente os humildes comerciantes em busca de recursos financeiros necessários ao seu sustento e o de sua família.

A ordem jurídica virou um caos. Cada governante regional ou local tornou-se um senhor feudal ditando normas a seu talante, e sem lei em sentido estrito.

É hora de recapitular noções de federalismo.

O Brasil adotou a forma federativa de Estado, onde convivem três entidades políticas autônomas e independentes (arts. 1º e 18 da CF). Como veremos a seguir cada entidade política tem a esfera de sua competência definida pela Constituição.

Costuma-se dizer que o estado tem a competência legislativa mais ampla. Tudo que não for da competência expressa da União é de competência legislativa estadual, ressalvados os casos de peculiar interesse local.

Acontece que a competência legislativa da União definida no art. 22 contém nada menos que XXIX incisos. E mais, o art. 21 enumera as atribuições da União em seus XXV incisos. Não apenas a competência legislativa da União é expressiva, como também as suas atribuições nos diferentes setores da atividade são muito extensas. Daí o federalismo centralizado de que falam os doutrinadores.

Existe, ainda, a competência legislativa concorrente, para hipóteses enumeradas nos incisos I a XVI, do art. 24 da CF.

Pela pertinência com a matéria aqui tratada convém lembrar os casos de competência comum que estão elencados no art. 23 da CF. O inciso II desse artigo diz que é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.

Feitos esses esclarecimentos examinemos as medidas decretadas pela União, Estados e Municípios para dar combate ao estado de pandemia.

A União sancionou a Lei nº 13.979, de 6-2-2020, prevendo, dentre outras coisas, o isolamento de pessoas doentes ou contaminadas; a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação; e exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver.

Portaria conjunta baixada pelos Ministros da Justiça e da Saúde prevê a prisão de pessoas que se recusarem a submeter às medidas emergenciais previstas na Lei nº 13.979/20 mediante aplicação dos artigos dos artigos 268 e 330 do Código Penal que criminalizam a conduta do agente que infrinja determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, e, que desobedeça a ordem legal de funcionário público, respectivamente.

Governadores e prefeitos decretaram medidas de isolamento social incluindo pessoas sãs, sem doenças e sem indícios de contaminação. Ao sofrimento pelo perigo da Covid-19 somaram-se a dor e angústia dos mais humildes que ficaram sem ganhos para seu sustento.

O STF decidiu que Estados e Municípios têm competência concorrente para decretar o isolamento social (ADI nº 6341). Contudo, a preservação da saúde da população não se insere em nenhum dos 16 incisos, do art. 24 da CF, onde estão enumeradas as hipóteses de legislação concorrente. E mais, como se verifica dos parágrafos desse art. 24, eventual legislação concorrente dos Estados e Municípios não poderia contrariar as normas da Lei nº na Lei nº 13.979/20 que é a lei de regência da matéria, enquanto perdurar o estado de calamidade pública, por força do disposto no art. 21, inciso XVIII da CF que diz competir à União planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações.

Não faz sentido algum supor que a União deva planejar e promover a defesa contra a calamidade pública com base na legislação estadual ou municipal.

Em assim sendo as normas estaduais e municipais que impõem isolamento social horizontal abrangendo população saudável é inconstitucional. Elas acarretam perda de produtividade, ocasionando o estado de penúria à população pobre por falta de recursos financeiros para satisfação de necessidades básicas, como a aquisição de alimentos, remédios, roupas etc. Só os mais abastados podem suportar, temporariamente, a falta de rendimentos.

As normas estaduais e municipais (decretos e portarias) violam em bloco os direitos fundamentais do cidadão: o direito de ir e vir;  o princípio da legalidade, o princípio da inviolabilidade das comunicações telefônicas; o princípio do livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão; o direito de propriedade; o princípio da legalidade dos delitos; finalmente, contraria o princípio que assegura a dignidade humana à medida que o isolamento prolongado mina os recursos de quem não disponha de vultosas reservas monetárias, além de acarretar a perda de emprego.

 

SP, 24-4-2020.

 

* Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDADT